Paulo Luna

A palavra é traiçoeira, engana o insano e o são. Similar faca a palavra rufa.

Textos

Ficção e loucura na obra de Raul Seixas - Um maluco beleza nas margens do imaginário
Na música “Metamorfose ambulante”, Raul Seixas se define como “ator” e não como um cantor ou poeta, e assim, abre possibilidade para um jogo lúdico que é a utilização de múltiplas personagens que se deslocam, metamorficamente, dialogando através da música com outras formas artísticas e áreas do conhecimento como o teatro, a filosofia, a psicanálise e a história.
Em sua performance de ator-cantor podemos mapear cinco personagens principais que se revezam na interpretação de sua obra: O louco; o profeta; o filósofo; o cantor romântico-brega e o roqueiro. Na figura do profeta, renuncia às verdades e se coloca em conflito com os valores sociais estabelecidos. Como roqueiro, se traveste de Elvis Presley brasileiro e faz dialogar as guitarras com o mais sertanejo baião e diz em canções como “Let me sing” que “Não quero ser o dono da verdade/Pois o Messias ainda não chegou”. Enquanto filósofo anuncia a dúvida “Não me pergunte porque/ Quem-Como-Onde-Qual / Quando-O quê ?”.
É a personagem do louco, entretanto, que vai emblematizar, e de certa forma, sintetizar sua proposta estética. Sendo o louco visto em nossa sociedade como o diferente, o que está fora, o não enquadrado, o que está à margem da normalidade, isso faz com que a personagem que encarna a loucura possa romper os limites do convencional e assim, enunciar e proferir sentenças que, descartadas como insanas numa primeira avaliação, guardam em sua ambigüidade as possibilidades do questionamento, da dúvida e da incerteza.
A personagem símbolo e emblema da atuação de Raul enquanto ator/cantor é a do “Maluco beleza” que afirma “Enquanto você se esforça/ para ser um sujeito normal/ E fazer tudo igual / Eu do meu lado aprendendo / a ser louco / Maluco total / Na loucura rea/ Controlando a minha maluquez/ Misturada com minha lucidez.”
Ser um “maluco beleza” seria encarnar uma postura nova diante da vida e da sociedade e suas convenções e limitações, que impõem, a todos, o mesmo tipo de comportamento e de pensamento, levando, assim, a que se considere como louco os diferentes e inadaptados.
Na obra de Raul Seixas, a metáfora da metáfora se desdobra na performance do ator que, em constante mutação, se desloca de qualquer noção de estar no centro, ou de estar proferindo verdades, ou de estar ocupando o lugar esperado para o artista da música popular pois para ele, a metamorfose, sendo constante, impede a emissão da verdade em seu sentido científico e o que se revela é logo metamorfoseado em outra metáfora: “Quero dizer agora o oposto do eu/ disse antes/prefiro ser essa metamorfose ambulante/ do que ter aquela velha opinião formada/ sobre tudo”.
Na figura de ator, que encarna o louco e o profeta, enuncia um discurso que vai acabar por ser visto como um filho bastardo que vaga nas vizinhanças da literatura e da própria música popular, olhado por muitos com desconfiança: “Eu sou um moleque maravilhoso/ No certo sentido mais perigoso/ Moleque da rua, moleque do mundo, moleque do espaço (...)/ Nesta vizinhança sou filho bastardo.”
Contrastando com a eterna euforia de quem acredita que consumir indefinidamente leva a uma felicidade sem fim onde morte e caos não estão presentes, seu discurso tornava-se profundamente incomodativo e paradoxal. Raul Seixas foi o contestador por excelência, o porta-voz do indivíduo não ajustado aos valores sociais vigentes, tornando-se ícone da contra-cultura no Brasil. Apresentou-se como um desajustado e desenquadrado aos valores dessa sociedade de consumo, batendo-se contra ela. E, aqui, observamos o paradoxo dessa postura, uma vez que sendo ele um artista da música popular cuja obra é colocada à venda no mercado e cuja própria sobrevivência, enquanto artista vinculado à indústria cultural, depende da vendagem de seus discos, seu discurso contestador voltou-se, de certa forma, contra ele mesmo, pois ao desqualificar e deslegitimizar a sociedade de consumo na qual seus discos eram vendidos, colocou no horizonte imediato a cessação de seu próprio discurso. Porém, como um jogador, vai fazer escaramuças constantes com o sistema, conforme afirma em “As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”: “A arapuca está armada/ E num adiante de fora protestar/ Quando se quer entrar num/ Buraco de rato/ De rato você tem que transar”.
O que possibilita tal postura é o papel do louco vivido por esse artista, podendo dessa forma emitir um discurso que fica na difusa fronteira entre realidade e ficção, somente possível através da arte ou da loucura. A arte e a loucura, em seu desmedimento possibilitam a transposição das fronteiras e das margens de tal forma que não se possa mais distinguir a realidade da ficção.
Nesse quadro, Raul Seixas vai introduzir outras maneiras de enunciar o discurso roqueiro flertando constantemente com a filosofia existencialista conforme pode se ver em “Óculo escuros”: “Quem não tem colírio/Usa óculos escuros/ Quem não tem filé/Come pão e osso duro/ Quem não tem visão/Bate a cara contra o muro”.
Na citação implícita de Sartre, “há um muro entre mim e a liberdade”, o roqueiro se metamorfoseia de filósofo e sempre num jogo de ser e não ser inventa de ser isso e aquilo, mas nunca de uma maneira totalizadora e definitiva, pois há sempre uma quebra que desloca a verdade e inaugura muitas vezes o non sense e o inesperado. Em “Rock’n’roll”, o roqueiro e o doente se confundem: Há muito tempo atrás na velha Bahia/ Eu imitava Litte Richard e me contorcia/ As pessoas se afastavam pensando que eu tava tendo/ Um ataque de epilepsia”.
Entre a contorção da dança e o ataque de epilepsia, entre criação artística e abalo patológico, entre a poesia e a loucura a obra de Raul Seixas se localiza no espaço do ficcional. Performaticamente sua dança que parece doença, ataque epilético ou coisa que o valha, é uma encenação que deixa no público a incerteza entre a loucura e a criação artística. A vida do cidadão Raul Varelas Seixas é ponteada de situações em que o rótulo patológico de loucura lhe coube, para muitos, como luva perfeita. Já o poeta, profeta, visionário, anarquista, escritor, Raul Seixas, criava-se a si mesmo de outra forma e apresentava de outra forma a loucura: Não há mais retorno/ Uns há que ficam, são tantos/ Quero a mão dos que prosseguem/ Quero a certeza dos loucos que brilham/ Pois se o louco persistir na sua loucura/ Acabará sábio.”
A loucura é por ele apresentada como fonte da sabedoria e de iluminação, comparada a um estado de êxtase religioso conforme o formulado pelas religiões orientais. O louco é aquele que, ao contrário dos muitos, a maioria que caminha de cabeça baixa seguindo o rumo da correnteza e com correntes nos pés, caminha com a certeza de seu caminhar e de sua busca, de sua procura. Os loucos seriam os portadores de uma certeza que incandesce e transcende a falta de visão e de sabedoria. Em constante pulsão, a palavra, o gesto, a imagem, o canto se misturam e mais que retratar uma realidade, se confronta com a realidade ficcionalmente.
Entre a verdade e a ficção, quem poderia apresentar a versão insofismável e definitiva, se a própria civilização ocidental “se tornou tão complicada e frágil, como um computador”? Entre as verdades da História e as mentiras da ficção quem poderia estabelecer com nitidez absoluta a mais insofismável fronteira? Falando aparentemente de uma história e de uma vivência reais o poeta vaga por outras margens.
Questionar valores e posturas buscando um significado mais real para a vida, numa visão existencialista. A loucura, nesse aspecto, não é a loucura moderna, mas a loucura em seu aspecto clássico, de transcendência, de êxtase místico e de revelação. Essa loucura, portanto, permite ao poeta ver mais e mais profundamente, observando detalhes da realidade cotidiana que fogem à percepção dos chamados “sãos” e comuns que caminham de cabeça baixa, como um gado que segue no rumo do nada. E é contra esse comportamento atordoado e repetitivo, sem criatividade e sem luz que se insurge a louca palavra do poeta.
“A loucura tornou-se, no homem, a possibilidade de abolir o homem e o mundo – e mesmo essas imagens que recusam o mundo e deformam o homem. Ela é, bem abaixo do sonho, bem abaixo do pesadelo da bestialidade, o último recurso: o fim e o começo de tudo. Não que ela seja uma promessa, como no lirismo alemão, mas porque ela é o equívoco do caos e do apocalipse: o idiota que grita e torce os ombros para escapar ao nada que o aprisiona é o nascimento do primeiro homem e seu primeiro movimento na direção da liberdade, ou o último sobressalto do último moribundo?”.
Raul Seixas, em sua obra poético-musical fez da loucura um paradoxo encarnando uma personagem que, ao mesmo tempo era sábio e profeta, que emitia questionamentos constantes, visões e profecias desdobradas em letras carregadas de nonsense. Entre o cantor popular de sucesso e o profeta do caos anuncia não as benesses prometidas pela sociedade de consumo, mas sim a confusão e o caos do abismo infinito, como em “As profecias”: “O anjo surgindo do mar/ Os selos de fogo, o eclipse/ Os símbolos do Apocalipse/ A fuga geral dos ciganos/ Os séculos de Nostradamus/ E está em qualquer profecia /Que o mundo se acaba um dia.”
Anunciar um fim que está próximo significa negar o happy end das telas de tv e dos cinemas e da própria maioria das músicas populares, mesmo daquelas que enfatizam as desilusões amorosas, mas deixam sempre a possibilidade para um novo amor onde a felicidade enfim estaria presente. A arte flerta com o sonho e assim o poeta e o louco se confundem. O desafio é manter-se no limite possível de se saber, pelo menos de forma aparente, onde começa a obra e onde termina a loucura ou vice-versa. Mas haverá realmente um parâmetro definido e definitivo para determinadas avaliações?
Mas, e quem é o outro? Quem é o louco? A realidade não se revela enquanto totalidade, mas sim, enquanto ficção e cada ficção, perante o olho humano, é um universo. O louco só é louco se sua verdade é colocada em contraste com outras. Entre o cantor popular que canta sua terra, seus costumes ou expressa seu eu lírico, Raul Seixas vagou pelo terreno do ficcional e fez da loucura mais do que uma patologia, uma possibilidade de criação.

Paulo Luna
Enviado por Paulo Luna em 17/10/2007


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